quinta-feira, 21 de maio de 2015

Grim Fandango: A dança macabra de um clássico eterno


Grim Fandango pode ser um dos jogos mais importantes de todos os tempos. Não estou me referindo aqui exclusivamente ao gênero adventure – até porque, considerando o gênero do adventure clássico, que teve sua época de ouro no começo dos anos 1990, com os trabalhos da LucasArts e da Sierra, Grim Fandango reina soberano. O que falo aqui é da importância e da influência desse jogo em tantos outros das gerações futuras. 

Não que Grim Fandango tenha revolucionado algo em termos de jogabilidade. Pelo contrário, é em sua narrativa, na maneira como ela se amarra às mecânicas clássicas do adventure, e no modo como um universo tão rico e profundo em sátira e crítica social foi construído que sua importância histórica reside. Tim Schafer, seu diretor e roteirista, é um dos nomes mais importantes da indústria, e um dos criadores mais talentosos. O fato de que este até hoje é o seu trabalho mais complexo e importante diz bastante por si só sobre seus méritos.



No enredo de Grim Fandango, o protagonista é Manuel “Manny” Calavera, um habitante da Terra dos Mortos, o lugar para onde as almas das pessoas vão após a morte. Ao chegar na Terra dos Mortos, todos sonham fazer a travessia final para o Nono Submundo, o lugar de descanso definitivo para as almas. Porém, a travessia não é tão simples: como chegar até o Nono Submundo é uma questão de como você viveu sua vida até o momento de sua, bem, morte. Aqueles que viveram uma vida justa têm o direito de viajar no trem número 9, um expresso que leva ao Nono Submundo em minutos. Para aqueles que não, o pós-vida não é fácil: eles precisam fazer a travessia a pé, atravessando um terreno inóspito, numa jornada que leva 4 anos.

Desnecessário dizer, a perspectiva da árdua viagem desanima muitas almas, que acabam arranjando empregos pela Terra dos Mortos e desistindo da travessia. Manny é um desses trabalhadores, embora nunca tenha abandonado a ideia de finalmente alcançar o Nono Submundo. Trabalhando como um agente de viagens, onde usa o tradicional figurino do Ceifador (apenas a primeira subversão de uma imagem clássica feita por Schafer no jogo), ele planeja usar seus esforços como pagamento para um ticket no número 9. Porém, o fato de nunca conseguir bons clientes, ao contrário de seu rival, Dom, o deixa cada vez mais desconfiado. Ao “roubar” uma cliente de Dom, Mercedes “Meche” Colomar, sua desconfiança se prova fundada: ele descobre um esquema de corrupção em seu trabalho que coloca a sua (pós-)vida e a de Meche em jogo, dando início a uma jornada que percorrerá toda a Terra dos Mortos e apresentará um grande leque de personagens marcantes, sejam aliados ou inimigos, cada um com uma personalidade fascinante e algo novo para acrescentar à trama.

Grim Fandango não economiza nas homenagens e influências que compõem sua história. Algumas estão mais óbvias, como todo o cenário da Terra dos Mortos e o estilo visual de seus habitantes, claramente inspirados pela celebração mexicana do Dia dos Mortos. Há também a clara referência ao cinema noir, com Meche exercendo seu papel de femme fatale com perfeição. O jogo de referências se torna ainda mais interessante quando Grim Fandango subverte as expectativas do jogador com os gêneros em questão. Se o enredo é o mais maduro e, de muitas formas, sombrio da história da LucasArts, cheio de críticas à burocracia, ao corporativismo e à exploração do trabalhador comum, é também um dos mais sarcásticos, ironizando todo tipo de grupo político de forma indiscriminada.

Play it, Glottis. Play "As Time Goes By".
Tudo isso é casado com a impressionante trilha de Peter McConell e uma das melhores direções de arte da história dos jogos de adventure. A edição remasterizada, lançada este ano, adiciona novas texturas, efeitos de iluminação e melhora o aspecto gráfico do jogo, oferecendo uma sensação de polimento, mas seu maior mérito é sem dúvida lançar esta obra tão importante em consoles da geração atual e ajudar a reforçar o peso de seu nome entre o público de vídeo games atual.

Grim Fandango não vendeu bem – uma das maiores sinas da carreira de Schafer, na verdade –, tendo sido lançado num ano em que o 3D fazia sucesso com suas mecânicas e visual inovadores, e nomes como Ocarina of Time, Metal Gear Solid e Half-Life dominavam o mercado. Ainda assim, sua importância sobreviveu ao longo dos anos e foi celebrada em diversos jogos por estúdios de todos os tamanhos e públicos. Grim Fandango levou a questão da narrativa em video games a um novo patamar, amarrando uma história cheia de metáforas e sutilezas com uma jogabilidade que lentamente perdia sua relevância, mas que ganhou nova vida e atingiu seu ápice ao ser enriquecida por um roteiro complexo e envolvente.

Embora o adventure tenha sofrido um recesso ao longo dos anos 2000, é difícil imaginar que aspecto teriam os jogos produzidos no atual retorno da popularidade do gênero sem seu impacto. O que é fácil de observar, porém, é como video games se tornaram uma mídia mais rica após Grim Fandango. E que venham muitos outros como ele no futuro.

With bony hands I hold my partner/ On soulless feet we cross the floor/ The music stops as if to answer/ An empty knocking at the door/ It seems his skin was sweet as mango/ When last I held him to my breast/ But now we dance this grim fandango/ And will four years before we rest.”

Data de lançamento: 1998, versão original; 2015, versão remasterizada
Onde jogar: A versão remasterizada foi lançada para PC, Mac, PlayStation 4 e Vita


sexta-feira, 1 de maio de 2015

Game jams na cultura dos jogos indie (e o que aprendi ao participar de uma)


Game jams não são nenhumas estranhas para os desenvolvedores indie. Boa parte das pessoas que estão entrando na cena independente de uma forma ou de outra acabam participando de pelo menos uma edição, em algum lugar, em algum momento. Não é por menos: o sucesso e longevidade das game jams poderiam falar por si só, mas os frutos que esse tipo de evento oferece são bastante estimulantes para quem está começando agora. Isso, inclusive, é algo que agora eu próprio posso atestar - sim, cara leitora ou caro leitor que caiu de para-quedas neste blog, além de falar sobre jogos indie, também sou um aspirante na área do game design, e recentemente participei de uma game jam bastante produtiva.

Sendo assim, nada mais apropriado que falar no meu blog um pouco mais a respeito desses eventos que já são parte essencial da cultura de jogos indie e contar mais da minha experiência nessa área. Afinal, nada melhor do que poder dizer em primeira mão meus pensamentos e opiniões a respeito de um tema que incorpora o espírito indie dentro de si.

Para começar: o que são as game jams?

"Jam" é uma palavra do inglês utilizada para representar uma sessão onde pessoas se reúnem para realizar algo na base da improvisação. O termo surgiu no mundo da música: em uma sessão de jam, músicos se encontram e tocam seus instrumentos sem qualquer combinação prévia e sem seguir uma diretriz específica para aquele encontro. A sessão pode servir com treino, proporcionar uma reunião descontraída entre amigos ou mesmo acabar produzindo um material que será lançado oficialmente depois.

Participantes da Global Game Jam 2015, uma das maiores jams do mundo.

As game jams foram criadas para seguir esse mesmo espírito. Sua origem data do começo dos anos 2000, quando eventos como a Indie Games Jam e a Ludum Dare foram criados. Como numa sessão de música improvisada, em game jams pessoas ligadas à produção de video games, como game designer, programadores, artistas, entre outros, se reúnem para montar um jogo em um tempo pré-determinado (usualmente 48 horas, embora algumas jams optem por 24 e outras mesmo 72 horas), todos seguindo um tema central que só é revelado no começo do prazo para o desenvolvimento. O elemento surpresa do tema é fundamental: assim, valoriza-se o elemento da improvisação e a criatividade e capacidade de trabalhar sobre pressão dos participantes são testadas. Pode parecer quase sufocante no começo (e um tanto intimidador), mas a verdade passa bem longe disso. A maior parte dos participantes afirma, ao final das jams, ter se divertido intensamente com a experiência, e os resultados tendem a ser bastante interessantes.

Game jams são quase sempre competitivas, oferecendo uma quantia em dinheiro à equipe vencedora, mas, embora sem dúvida este seja um aspecto bastante atraente desses eventos, ele está bem longe de ser o mais importante. Jams são ocasiões sociais, antes de tudo, onde amigos têm a chance de se reunir em torno de um interesse comum - video games - para participar de um processo criativo e, quem sabe, formar os alicerces de uma parceria de longo prazo. Há também a oportunidade de desenvolvedores que não se conhecem expandirem suas relações sociais e, claro, jams propiciam um fim de semana onde ideias interessantes e proveitosas para novos jogos surgem em grandes quantidades.

Titan Souls, um dos hits indie deste ano, foi criado originalmente para uma edição da Ludum Dare em 2013.

Jogos como Titan Souls e TowerFall foram pensados durante game jams, e empresas indie como a Thatgamecompany (de Journey, Flow e Flower) foram ativas participantes de jams no começo de sua existência, dando uma mostra do potencial deste tipo de evento.

Minha experiência com uma game jam e o que descobri com ela

Participei recentemente da game jam criada pela Kolks Games, que reuniu mais de 70 equipes. Fui convidado por uma amiga e, junto com dois outros amigos, montamos um time rapidamente e dissemos sim ao desafio. As 48 horas que utilizamos para criar nosso jogo foram talvez as mais produtivas da minha vida, serviram como uma incrível injeção de ânimo em mim e com certeza vão ficar guardadas na minha memória por muito tempo.


O melhor aspecto da experiência foi termos conseguido finalizar nosso jogo, deixando-o bonito e funcional, totalmente dentro do prazo e sem grandes estresses (tirando aqueles momentos de tensão ou preocupação ocasionais deste tipo de proposta, mas todos rápidos e pontuais). Isso se deve, sem dúvida, em boa parte à boa dinâmica que tínhamos entre nós, participantes, mas também a uma série de decisões acertadas que tomamos antes de começar a pôr o projeto em prática, antes mesmo de sabermos o tema. Não que tenha sido perfeito, entendam: em função da nossa inexperiência, nosso cronograma nem sempre esteve dentro do prazo ideal (mas conseguimos compensar) e há espaço para polimento e melhorias em muitos aspectos do nosso ritmo de produção. Mas, como marinheiros de primeira viagem, sem dúvida a sensação foi de sucesso e o resultado superou nossas expectativas.

Se eu fosse dar apenas três dicas para quem está interessado em participar de uma game jam pela primeira vez, três dicas que contenham os pontos mais importantes para se ter em mente antes de começar, diria algo assim:
- Nunca se esqueça do tempo pré-determinado, ou, em outras palavras a solução mais simples é a melhor solução. Use os softwares que você tiver mais familiaridade e que satisfaçam suas necessidades o mais facilmente possível. Se encontrar um bug que não está quebrando o jogo, o ideal é contorná-lo ao invés de resolvê-lo (o que pode demandar um tempo não existente). Talvez o resultado final não seja exatamente o que você tinha em mente ao começar, mas se você fez o melhor que podia dentro do prazo, só há motivos para se orgulhar.
- O prêmio final é bom, sem dúvida, mas não faça dele sua meta principal. Entre para ganhar, mas lembre-se que o jogo que você produzir é eterno, é seu e é algo que você sempre terá. Aprecie a experiência adquirida e os bons momentos. O que me leva a...
- DIVIRTA-SE. Game jams podem ser realmente divertidas, além de proveitosas, pergunte para qualquer pessoa que já participou de uma. Entre nela com coração e mente abertos e o resultado certamente será enriquecedor - e possivelmente memorável.

Encerrada esta conversa, deixo aqui um link para quem quiser ver o resultado dessa game jam, cujo tema era "água", para meu grupo, AngryDevs: nosso jogo Densidade. Quem se interessar pode jogá-lo clicando aqui. Quem quiser nos ajudar na votação que vai fazer parte do processo de escolha do vencedor, é só clicar aqui e dar like nesta foto do Facebook (há também nessa galeria fotos e links para os outros jogos criados para a jam, alguns bastante interessantes).

E até a próxima com mais jogos indie =)

Densidade, jogo criado minha equipe para a game jam da Kolks Games.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Transistor: Narrativas invisíveis na Utopia digital


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Existem jogos que oferecem diferentes combinações de mecânica e jogabilidade em uma proporção tão grande que parece infinita. É possível jogá-los três ou quatro vezes e, no fim de cada uma dessas vezes, perceber que você descobriu pelo menos mais uma coisa nova a respeito desse jogo. Já outros também oferecem novas descobertas ao jogador, não importa quantas vezes ele volte, só que dessa vez em sua narrativa. Nesses casos, jogar novamente para prestar atenção em detalhes antes ignorados se torna quase essencial para quem se interessa por narrativas complexas. No meio desses dois casos, apresentando um equilíbrio que uns poucos fortunados conseguem alcançar, está Transistor.

Verdade seja dita: eu posso percorrer os corredores de Cloudbank por dias a fio, testando variadas combinações de Functions e visitando cada terminal pelo caminho, e ainda assim passar longe de atingir a completude do segundo jogo da Supergiant Games, sucessor do aclamado Bastion. Há suficiente material em Transistor, tanto em narrativa quanto em jogabilidade, capaz de render uma análise profunda que no fim só arranha a superfície de seu conteúdo - o que é, obviamente, ao mesmo seu maior trunfo e minha maior dificuldade ao tentar fazer uma análise desse tipo. Como um bom fã de desafios, contudo, aqui estou, agradecido por mais essa camada de complexidade que Transistor oferece e a qual tentarei desvelar agora.


Em Transistor, você controla Red, uma cantora extremamente popular (nível Beatles de popularidade, ou o que quer que seja equivalente aos Beatles hoje, vocês jovens pós-modernos me informem) da cidade de Cloubank, uma espécie de utopia futurista onde os talentos de todos os cidadãos são explorados e potencializados. A própria Cloudbank, inclusive, parece ser guiada pela vontade coletiva de seus moradores. Certa noite, Red sofre um atento orquestrado pela Camerata, uma organização composta por pessoas extremamente influentes de Cloubank e insatisfeitas com os rumos da cidade. O atentado falha quando um homem misterioso é morto no lugar de Red, que é deixada sem voz e com a posse da Transistor do título - uma arma no formato de uma espada que absorveu a mente do sujeito sem nome.

Juntos, Red e o homem dentro do Transistor caminham por Cloubank em busca de respostas, apenas para descobrir que a cidade foi tomada pelo Process, um exército de robôs que agem como um vírus de computador, modificando a cidade e assimilando seus cidadãos (junto com seus talentos). É na batalha com o Process que reside a mecânica-chave de Transistor. Usando esses talentos, ou Functions, na terminologia do jogo, Red pode enfrentar o Process em batalhas que se dividem em dois modos: tempo real, como nos actions RPGs clássicos, ou Turn, onde inimigos congelam e o cenário se transforma em algo semelhante a um mapa de RPG tático. Apresentar dois modos de combate diferentes se revela uma opção interessante dos game designers, já que oferece uma oportunidade para o jogador de moldar seu playthrough de acordo com seu perfil, seja ele mais estratégico ou agressivo.

Outro aspecto da jogabilidade de Transistor que apresenta espaço para experimentações do jogador são as Functions, que fazem as vezes das habilidades dos RPGs tradicionais. Ao longo do jogo Red absorve novas Functions com o Transistor, aumentando sua variedade de movimentos em batalha. Ao todo, existem 16 Functions, algumas de ataque, outras de defesa, e é possível fazer combinações entre elas pelo menu ou mesmo colocar algumas em ação passiva, criando centenas de usos possíveis. Transistor faz um bom trabalho em incentivar o jogador a explorar tantas combinações quanto possível, transformando as Functions em uma mina de ouro para quem quiser experimentar variados modos de jogo.


Há no universo de Transistor uma quantidade de elementos que permanecem propositalmente vagos, deixando o jogador preencher as lacunas com as próprias teorias - e acreditem, existem incontáveis delas pela internet afora. Afinal, o que é Cloudbank, com seu nome tão significativo? Ela é parte do mundo físico? Há algo além dos limites da cidade? Qual a natureza exata do Transistor e do Process? Transistor não é um jogo que oferece respostas diretas para todos os seus mistérios, então não espere por elas. Em vez disso, o exercício de criar sua própria interpretação para o que é deixado em branco é essencial para a experiência do jogo. Pode parecer clichê, a princípio, mas faz perfeito sentido de acordo com a filosofia da Supergiant Games de tornar o jogador em um explorador e adaptador não apenas das mecânicas do jogo, mas também de sua narrativa. E há algo melhor do aquele intenso desejo de conversar com alguém após terminar uma obra de ficção?

Em uma época em que discussões relativas a tantos aspectos do video games afloram, incluindo tantos questionamentos relacionados a qual seria a duração ideal de um jogo, Transistor apresenta uma história de aproximadamente 5 horas extremamente bem-feita e que soa na medida certa, oferecendo ainda muitas outras outras horas para jogadores interessados em extrair o máximo dessa experiência. Há inclusive uma arena de testes, perfeitamente integrada à narrativa do jogo, que fornece desafios extras ou mesmo um espaço para treino a seus desbravadores. E, se após tudo isso ser dito e considerado, seu objetivo ainda for uma experiência direta, não há problemas, pois Transistor está na medida certa para isso também, transmitindo beleza e fascínio por seus circuitos. Na utopia de Cloudbank há espaço para todos, se você apenas aceitar fazer parte dela.

Data de lançamento: 2014
Onde jogar: PC, Mac, Linux e PlayStation 4

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sexta-feira, 13 de março de 2015

Lumino City: Uma aventura em papel, maquetes e memórias


Uma memória, mais antiga do que parece ser, na maioria das vezes: é o ensino fundamental e estou na minha aula de Artes, papel colorido, tesoura, cola e fita adesiva na minha frente. O trabalho de hoje é montar figuras geométricas em três dimensões e o andamento da atividade para mim está se desenrolando como uma semifinal de Copa do Mundo (eu, no caso, o Brasil, e os materiais para a tarefa, a Alemanha). Ao final daquilo tudo, após entregar à professora minhas figuras geométricas no melhor estilo 2.5D, muito à frente de seu tempo, eu tinha certeza que de que aquele não era o dom com o qual eu havia nascido. O tempo, mestre de tudo, provou que isso era verdade, Cresci sem qualquer talento para artes plásticas, mas amando descobrir cada novo talento no campo, fascinado pela habilidade e pelas diferentes representações de mundo possíveis por meio dessa habilidade. As aulas de Artes, hoje sei, não estavam ali para descobrir quem tinha o talento ou não. Sua função era expandir nossas visões e guiar nossos olhos para pontos até então ignorados.

Poucas coisas me lembraram tanto essas aulas, cuja idade já é contada na escala de décadas, quanto Lumino City. Não é só seu estilo visual, que, em plena era da arte digital, aposta em uma abordagem old school - todos os cenários são construídos em modelos reais, maquetes de papel e cartolina -, como também sua atmosfera de exploração, fascinação e descoberta de um mundo com novas e incríveis possibilidades. Lumino City tem em si o espírito de uma criança com uma aventura em mãos. Não a missão que guia sua protagonista, Lumi, propriamente dita, já que esse é apenas o caminho. A aventura real é a jornada de amadurecimento e independência de Lumi, uma aventura compartilhada por bilhões de crianças em aulas de Artes (e Matemática, e História, e Ciências) ao redor do mundo.


Em termos mecânicos, Lumino City é um puzzle / point and click criado pela State of Play. Ao contrário da maior parte dos point and clicks, o jogo não apresenta uma história complexa - sua premissa inicial é extremamente básica e nunca realmente se expande. Lumi é uma garota que parte em busca de seu avô, que desapareceu misteriosamente durante um encontro para um chá. Sua jornada a leva à Lumino City do título, um lugar de arquitetura singular, construído como um carrossel na rocha de uma montanha. Casas se abrem para o nada, a incontáveis metros de altura, complicadas passarelas, escorregas e canos servem de transporte de um ponto a outro da cidade e todos os moradores parecem conhecer o avô de Lumi, apesar de ninguém saber apontar seu paradeiro.

Eu poderia falar horas e horas de como o estilo visual de Lumino City é impressionante e não fazer justiça a ele. Provavelmente o que mais chama atenção nele é ser tão destoante da arte digital que é o padrão estético para video games. Mesmo colocando-se o fator novidade de lado, ele ainda é extremamente notável e deixa uma impressão marcante no jogador. Lumino City ganha vida na direção de arte impecável e original do jogo. Seus puzzles seguem a maior parte dos moldes estabelecidos pelos point and clicks, e, se não reinventam a roda, são bastante bem pensados e capazes de prender a atenção do jogador com sua variedade e razoável desafio (que aumenta bastante no trecho final do jogo). Há um sistema de dicas bem criativo, aliás, por meio de um Guia-Para-Todas-as-Coisas do avô de Lumi que a garota pode consultar para avançar na solução de certos puzzles.

A produção de Lumino City muitas vezes lembrava a de um filme.
É sem dúvida na exploração da cidade que Lumino City se destaca. Cada cenário apresenta uma novidade e seus moradores, meio fábulas, meio brincadeira com arquétipos, parecem fazer uma simbiose com o espírito da cidade, servindo como uma verdadeira extensão da arquitetura do lugar. Uma consideração importante a respeito deste jogo é que ele é na verdade uma continuação de outro trabalho da State of Play, Lume (estou começando a notar um padrão aí). Isso, porém, não é um problema para quem não teve a oportunidade de jogar o antecessor, grupo no qual me incluo. Lumino City é um jogo totalmente a parte e independente, mantendo apenas os personagens centrais e estilo visual de Lume.

Lumino City não é perfeito (sua jogabilidade apresenta espaço para melhorias simples que enriqueceriam a experiência) nem tenta ser extremamente inventivo em suas mecânicas, mas há bastante características únicas e momentos incríveis para garantir que sua experiência permaneça com o jogador por um longo tempo. Sua mistura de gostos - descobertas da infância com questões da vida adulta, tradição e progresso, o novo e o antigo em tranquila união - não perde a mão em nenhum instante, e há muitos elementos em sua história simples que podem propiciar leituras variadas. A experiência é válida para crianças de todas as idades, as de 8 e as de 80, porque o mundo tem sempre um ângulo novo para ser explorado e descoberto, não importa o quanto mais velhos e certos de tudo fiquemos. É exatamente o que obras como Lumino City querem nos lembrar a todo tempo. Ainda bem.

Data de lançamento: 2014
Onde jogar: Mac e PC, pelo Steam

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Monument Valley: A jornada da princesa nas veredas escherianas


M. C. Escher, artista gráfico holandês, foi sem dúvida um dos criadores mais importantes do século XX. Sua obra, marcada por padrões geométricos, isometria, cruzamentos e entrecruzamentos, transformava a matemática em arte ao exprimir conceitos e fórmulas em gravuras. Mais do que isso, sua obra é lembrada e celebrada hoje em dia por abordar o conceito dos ciclos infinitos, sistemas que, por ilusão de ótica, partem de um ponto inicial e voltam para esse mesmo ponto de uma maneira que desafia a lógica, como sua famosa cachoeira exemplifica. Uma obra tão inovadora, que brinca com noções de espaço e física, não entraria para a história sem deixar de inspirar dezenas de trabalhos de ficção (e render algumas exposições, também, incluindo uma alguns anos atrás no Rio da qual sou bastante frustrado de não ter ido - mas não nos prolonguemos nisso).

Uma das notáveis obras de ficção inspiradas em Escher é Monument Valley, do estúdio Ustwo, um puzzle lançado para Android e iOS que assume suas influências de maneira clara e apaixonada em sua direção de arte e utiliza os conceitos das criações escherianas como núcleo de sua jogabilidade. O jogo segue Ida, uma princesa que explora as construções de um reino sem nome, tentando achar seu caminho pelos labirintos do lugar, criados a partir da "sagrada geometria" utilizada no reino, como é explicado na história. O objetivo da jornada de Ida não está claro para o jogador inicialmente, embora a narrativa eventualmente ofereça pistas para solucionar esse quebra-cabeças (e nenhum duplo sentido pretendido aqui, juro).


A jogabilidade de Monument Valley é bastante simples e intuitiva: os toques do jogador movem Ida. Eventualmente ela encontra alavancas que podem ser usadas para mover ou alterar o cenário, transformando-o em uma ilusão de ótica escheriana que Ida pode usar em sua vantagem para chegar em pontos antes inalcançáveis. A simplicidade das mecânicas é contrastada pela riqueza da direção de arte e do estilo visual de Monument Valley. Mesmo na tela pequena de um smartphone a "sagrada geometria" não tem seu brilho diminuído, transformando o jogo em mais uma prova de que mesmo com recursos limitados é possível fazer muito. O mundo de Escher ganha mais cor e novos tons de poesia, em uma homenagem sólida e com personalidade.

Porém, o que me impressionou ainda mais em Monument Valley foi seu talento para expor sua narrativa ao jogador com pequenas pistas e dicas, oferecidas em uma introdução, uma frase ou um detalhe do cenário. É verdade que essa natureza aberta, que deixa para o jogador compor as próprias teorias e interpretar aqueles eventos à sua maneira, pode ser bastante frustrante para quem prefere narrativas mais diretas, entretanto vale a pena dar uma chance e juntar as peças da história por trás daquele mundo e da solitária jornada de Ida. Jogos como Shadow of the Colossus e Journey - que figuram entre os mais importantes da cronologia dos video games - também exploraram o caminho da narrativa aberta com grande sucesso, e Monument Valley consegue sustentar um tom de mistério e fascínio igualmente interessante, embora de maneira mais simples e particular.

Há outros pontos inerentes a Monument Valley que também não são universais: o principal é que o jogo é muito curto. Jogadores experientes em puzzle podem terminá-lo em uma hora e meia, mais ou menos. Mesmo quem não tem costume com o gênero não deve tomar muito mais do que isso - Monument Valley é fácil, em termos diretos, o que pode também ser negativo para alguns. Eu, porém, acredito que a Ustwo sabia exatamente o tipo de experiência que queria oferecer e entregou justamente o que planejou: uma experiência artística, autoral, que dura o tempo exato que precisa durar. Quem ainda sentir vontade de mais após terminar o jogo pode comprar a expansão, Forgotten Shores, que adiciona oito novas fases. Seja como for, quem aprecia aventuras curtas e experiências ricas em cor, criatividade e beleza tem nas veredas escherianas de Monument Valley um caminho interessante para percorrer.

Data de lançamento: 2014
Onde jogar: Sistemas Android e iOS



quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Life Is Strange, Episódio 1: Muito mais que uma introdução


"O bater das asas de uma borboleta em Tóquio pode provocar um furacão em Nova York." Se esse enunciado parece familiar para você, você provavelmente já leu ou ouvir falar alguma coisa a respeito da teoria do caos. Se analise teórica de sistemas não é sua praia, não se preocupe, você não veio parar na página errada. Tudo que quero é chamar atenção para a diretriz central da teoria, a de que pequenas alterações e irregularidades em um sistema complexo podem levar a resultados inesperados (ou seja, é a justificativa científica para aquele temporal anunciado pelos meteorologistas há dias ter se transformado em sol e muito calor). A grosso modo, estamos falando aqui das condições para o surgimento do caos, e existem poucas coisas mais caóticas que a vida de uma garota de 18 anos, presa entre o fim da adolescência e o começo da vida adulta em um mundo que promete descobertas e anseios, felicidades e decepções entregues quase juntas e mal embrulhadas.

Ainda assim, Life Is Strange, da Dontnod Entertainment, decide adicionar um pouquinho mais de caos na vida de Maxine Caulfield. Max voltou à pequena cidade no Oregon na qual nasceu para estudar fotografia na Blackwell Academy, após alguns anos morando em Seattle. Após algumas semanas inciais menos que entusiasmantes, a vida de Max na academia dá um giro quando ela testemunha um assassinato em um dos banheiros - e a vítima é sua melhor amiga de infância, Chloe, com quem ela perdeu o contato após sua mudança. O pânico dá lugar ao choque quando Max, em seu desespero, descobre ter o poder de voltar no tempo. Jogada de volta para a sala de aula, alguns minutos antes, ela precisa lidar com as implicações de seu poder recém-descoberto e vê nele a chance de fazer algo bom e salvar a amiga de infância.


A proposta de Life Is Strange se inspira em um longo sonho humano: quem nunca se arrependeu de dizer algo um segundo depois das palavras saírem e desejou poder voltar no tempo para consertar isso? Ou se torturou por dias após tomar uma decisão importante, imaginando o que aconteceria se simplesmente tomasse a decisão oposta? A mecânica de "aperte um botão e volte alguns instantes" não é inédita - Prince of Persia: The Sands of Time foi um dos maiores sucessos de 2003 por conta justamente disso, entre outros fatores -, mas Life Is Strange se destaca por amarrar essa funcionalidade à sua narrativa. Não é, portanto, um recurso de tentativa de erro, algo que pode ajudar você a ter uma vantagem em um combate ou sequência de plataforma; pelo contrário, não há escolha "certa" entre assumir ou não a culpa de algo no lugar de uma amiga ou optar por humilhar ou confortar uma rival após uma situação embaraçosa. Todas as possíveis escolhas dão início a uma cadeia de eventos que pode se tornar gigantesca, e o reset temporal pode adicionar mais variáveis a uma equação que já é bastante complexa.

Se sua mecânica já é um diferencial que torna o primeiro episódio, lançado em janeiro deste ano, digno de uma conferida, sua história mostra-se promissora e o elemento que faz o season pass valer a pena. O mundo em que Max vive, as pessoas que fazem parte dele e as situações e dilemas pelos quais elas passam são bastante críveis e escritas com bastante cuidado. A angústia característica de jovens de 17 e 18 anos pode não ser o cenário mais entusiasmador para se visitar (ou revisitar), mas é tratado com uma boa dose de beleza: caminhar nos corredores da academia ao som de indie folk enquanto você é apresentado às felicidades e tristezas daquele grupo de estudantes é um momento de puro poesia, que dá o tom das coisas que virão.

Ok, talvez nem tudo seja crível, mas acho que é isso que chamam de rebeldia adolescente, não?

Também é preciso admirar a bravura da Dontnod Entertainment, que, em tempos de Gamergate e polêmicas (completamente idiotas e danosas) quanto à representação feminina em video games, manteve-se fiel à sua escolha artística e insistiu em uma protagonista feminina, apesar das pressões de publishers em potencial para que isso não acontecesse, até receber carta branca da Square. Esse é, inclusive, o segundo do jogo da desenvolvedora a optar por uma mulher como protagonista, algo já feito em Remember Me, jogo que, apesar de não chegar perto de reinventar a roda, merecia mais amor e atenção do que recebeu. Em Life Is Strange, a relação de Max e Chloe é um dos destaques do primeiro episódio e promete ser expandida e aprofundada nos próximos capítulos.

O efeito borboleta de Life Is Strange está só começando, é verdade, e seus efeitos apenas começam a ser sentidos. A borboleta já está lá e o furacão já se formou, mas ainda está para chegar. O primeiro episódio é uma introdução ao que pode se tornar um dos melhores jogos do ano, ao mesmo tempo em que não se limita a ser apenas um degrau da escada. Sua riqueza e profundidade já é notável e fica bastante claro que ainda há muito mais pela frente. O vento pode soprar para qualquer lado e se o presente é moldável, o futuro está aberto a especulação, mas uma coisa já está decidia: eu vou estar lá para ver o que vai acontecer.

Data de lançamento: O primeiro episódio saiu em janeiro e o segundo está previsto para março, com outros três ao longo do ano.
Onde jogar: PC, PS3, PS4, Xbox 360 e One. É possível comprar o episódio separado ou o season pass.


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

The Vanishing of Ethan Carter, ou (Venha ver o pôr do sol)


No meu caminho, desci até a praia e fiquei olhando a água bater nas pedras. Eu conseguia ouvir a represa dali, distante, mas uma presença palpável. A imagem do corpo que eu tinha acabado de encontrar ainda estava gravada na minha cabeça, mas não evocava terror. Era mais uma melancolia, uma tristeza mal-disfarçada que havia se entranhado em cada centímetro daquela estrada. Fui até a ponte sobre a represa e fiquei alguns minutos apenas olhando a vista, ouvindo a água exercer seu poder e os sons do fim de tarde. Não queria continuar andando, não agora, não por enquanto. Queria ficar ali e talvez chorar. Mas eu tinha uma meta, ainda que não soubesse até então qual era. Mas sabia que ela não estava ali, naquela ponte, naquela melancolia. Então fui. Sem saber para onde, apenas fui.

The Vanishing of Ethan Carter começa com uma mensagem de seus desenvolvedores: "Esse jogo é uma experiência narrativa que não segura você pela mão". Essas palavras podem ser extremamente encorajadoras para alguns, extremamente frustrantes - ou pretensiosas - para outros. Independentemente de qual desses é o seu caso, uma coisa eu posso garantir: essas palavras são sinceras e verdadeiras. Não há uma grande introdução à história: você sabe apenas que é Paul Prospero, detetive paranormal que, como você descobre de maneira empírica minutos depois, pode entrar em contato com o mundo dos mortos. Paul foi convocado à minúscula cidade de Red Creek Valley pelo tal Ethan Carter do título, um garoto que desapareceu no ar após fazer um chamado desesperado. Onde está Ethan e o que o deixou tão assustou é um mistério cujas peças do quebra-cabeças você começa a juntar no primeiro minuto de jogo.


A maior vantagem de The Vanishing of Ethan Carter é, como indicado por seu aviso inicial, confiar plenamente em seu jogador. Isso não se refere apenas a questões mais práticas, como dificuldade ou aprendizado de mecânicas. Sim, você não vai receber qualquer instrução para resolver os puzzles (e, na verdade, na primeira vez que encontrei um só percebi que se tratava de um puzzle quando falhei nele e tive que recomeçar), mas esse é um jogo montado astutamente de modo que isso não se torne um ponto de frustração: não há morte, limite de tempo ou adversários, de modo que tudo pode ser feito ao seu tempo. O principal benefício dessa liberdade oferecida, porém, é que toda a narrativa do jogo é desvelada por você e apenas você, no seu ritmo, por meio de seus esforços e descobertas. A sensação de objetivo alcançado casa perfeitamente com a atmosfera de mistério e a natureza aberta do jogo.

O segundo grande trunfo de The Vanishing of the Ethan Carter é também o primeiro que se nota: o jogo é simplesmente e inacreditavelmente bonito demais. É verdade que potência gráfica não é indispensável para criar atmosfera e, pelo menos na minha opinião, está longe do topo da lista de coisas que constituem um bom jogo, mas seria extremamente injusto e até cruel não oferecer elogios ao feito que são os visuais dessa obra. O time da Astronauts, a desenvolvedora, claramente sabia o que queria alcançar e não poupou esforços. A direção de arte é riquíssima, as texturas são impressionantes e o jogo como um todo parece tão orgânico e real que é impossível não se sentir andando realmente pelas trilhas do Wisconsin, acreditando de coração que se você respirar fundo e se concentrar, vai sentir o cheiro da terra molhada.


The Vanishing of Ethan Carter tem em si uma mistura de elementos e referências que não passam despercebidos a seu jogador: é impossível, por exemplo, não associar Red Creek Valley com Twin Peaks, duas cidades relativamente isoladas onde eventos sinistros acontecem rotineiramente. Conforme você explora o lugar, aparentemente deserto, se depara com uma série de assassinatos e as mecânicas utilizadas para resolver esses crimes podem lembrar jogos como Murdered: Soul Suspect. The Vanishing of Ethan Carter consegue, porém, se diferenciar e se mostrar uma obra bastante original por meio de sua atmosfera e narrativa com personalidade. Ao fim da experiência, fica a sensação de que seus desenvolvedores conseguiram atingir sua meta: criar um jogo de mundo aberto com imersão singular, com uma jogabilidade simples, mas efetiva, que se amarra perfeitamente a esse mundo.

Fica, também, ao fim de tudo, uma admiração pela montanha-russa de emoções que esse jogo consegue oferecer sem perder seu foco. Deslumbramento, suspense, puro horror e alegria sincera aparecem em sucessão ao longo da jornada, tornando The Vanishing of Ethan Carter uma experiência próxima ao indescritível - e também muito pessoal. Uma constante, porém, é sua inegável melancolia. Leve, quase velada, por trás dos panos, apenas ali, naquele pôr do sol no horizonte visto pela ponte sobre a represa.

Data de lançamento: 2014
Onde jogar: PC, por Steam, com previsão de lançamento para PS4 para este ano