terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Always Sometimes Monsters: Monstros, demasiadamente humanos



Texto por Vanessa Raposo*

Eu queria muito botar uma bala na cabeça dela.

Chovia e eu não era "eu". Tampouco era "minha personagem" recorrente. A pessoa que erguia o revólver não tinha nada a ver com a história que acabara de ouvir: era um estranho desembaraçado dos nós de uma narrativa perturbadora; um ouvinte isento que podia julgar sem ser afetado pela pessoalidade da coisa toda.

Exceto pelo fato de que era eu – Vanessa-jogadora-prazer – quem controlava seu dedo no gatilho.
"Escolha é uma ponderação entre custo e benefício”, disse alguém. “As circunstâncias influenciam nesta ponderação. As consequências cuidam do resto. Por isso, neste sistema, não pode haver ‘certo’ ou ‘errado’." Percebo-me inclinada a concordar. Existem coisas que afetam aqueles que estão ao nosso redor de maneira positiva e existem coisas que destroem as vidas alheias. Mas o universo não tem um sensor de Paragons e Renegades e não recompensa ou pune de acordo com nossa filiação. No fim das contas, para sobreviver, às vezes é preciso ser esperto, às vezes é preciso ser gentil. Mas, às vezes, é preciso ser um monstro.

Always Sometimes Monsters não é um jogo fácil. Não falo isso no sentido mais tradicional de "milhões de coletáveis e chefões porradeiros para enfrentar", mas mais como "bosta de soro caseiro, preciso mesmo tomar esse troç... uuaargh". Difícil de engolir, I mean. Isso não quer dizer que ele seja ruim. ASM é contado de maneira intrigante e interessante, mas claramente não é um jogo que tenha como função primária "divertir" o jogador. Em muitos momentos, ele chega a ser monótono e entediante – propositalmente.  E isso dá peso a sua mensagem, solidez a nossas decisões. Ok, ok... Talvez “soro caseiro” tenha sido um exemplo ruim. Pense mais em um copão de Ovomaltine – delícia, mas essas pelotinhas precisam ficar irritando a garganta assim? Isso é ASM, para o bem ou para o mal.


Na introdução do jogo, você é apresentado como um personagem com um futuro promissor. Depois de identificar seu gênero, etnia e orientação sexual, você brinda ao que o mundo parece estar te dando numa bandeja de ouro: um contrato milionário assinado com uma grande editora, a promessa de riqueza e o amor de sua vida bem ali, ao seu lado. A cena corta para um ano depois. Você está sozinho, atolado em dívidas num apartamento minúsculo no subúrbio. Como não tem sequer uma única página de seu livro escrita, a editora te dá um pé na bunda. E seu suposto amor vai casar com outra pessoa dentro de um mês. Bem-vindo à sua vidinha de merda!

É aí que nós, jogadores, entramos, trazendo todo o nosso caos particular conosco: quando recebo o convite para o casamento de minha ex, inevitavelmente preciso reavaliar a minha própria vida. O que é importante para mim? Meu trabalho criativo? Simplesmente sobreviver como for possível? A lealdade a meus amigos? Reconquistar meu amor, talvez? O fato é que tenho 30 dias in-game para descobrir. Na jornada, atravesso o país, conheço diversos personagens e sou colocada de frente com várias decisões morais que dizem quem, de fato, sou. Nesse intervalo, sobra tempo para discutir exploração de mão-de-obra, trabalhos idiotizantes, vício em drogas, violência, preconceito racial, de gênero e de orientação sexual, e até fraude eleitoral. Ao longo de flashbacks, influenciados pelas minhas decisões "futuras" (ou seja, no tempo do jogo), é que descubro o momento preciso em que as coisas começaram a dar errado. Por culpa de quem? Dá para consertar? Eu quero consertar? Acima de tudo, a pergunta que fica é: até onde vou por algo que desejo muito? Não é uma premissa extremamente inovadora nos jogos, é verdade, mas o fato de falarmos de coisas cotidianas e reais engrossam o tom e atingem um ponto certeiro.


O que Always Sometime Monsters faz muito bem é criar uma história interessante em um setting ironicamente pouco utilizado nos videogames: o mundo real, com pessoas reais. Ele ajuda a suprir uma carência evidente em jogos que tratem de questões cotidianas e de dramas humanos que fujam dos apocalipses zumbis, guerras e batalhas intergalácticas. Existem bilhões de histórias ocorrendo neste exato momento em nosso mundo normal, com nossos amigos, pais, filhos enquanto vão à padaria, pagam o colégio das crianças e evitam comer salada. O vácuo que os jogos deixam ao ignorar esses temas fica ainda mais evidente quando a gente pausa para comparar com outras mídias. Por isso, é importante que games como ASM existam – e que maravilha que, ainda por cima, seja tão coerente e interessante.

Apesar de nem sempre ser agradável, Always Sometime Monsters é um jogo com uma vibe no geral positiva. Ele é engraçado – acredite ou não –, e segue num ritmo que por vezes lembra mais um bate-papo entre amigos cheios de ideias que você adora ouvir enquanto toma umas cervejas. Não se engane pelos visuais, também. Apesar de ser feito no RPG Maker, há capricho no texto, na caracterização dos personagens e maturidade clara para falar do que importa. Mais interessante, porém, é que aquilo que definimos como relevante vai aparecendo aos poucos de uma forma analógica (isso é, não binária) ao longo da jornada e de uma série de escolhas. Há gradações cinzentas, tons inclusive interpretativos, que moldam a nossa própria história em mais do que uma simples ramificação de escolhas fixas.

Por isso, e apenas por isso, eu fiz aquilo na noite chuvosa.

Tinha ouvido o suficiente. O comando de disparar a arma é digital: 1 – mata; 0 – não mata. Mas a mente que decide é analógica; minha história é repleta de caos e esbarrões. Não era por vingança, raiva ou frio merecimento. Aquela mulher nunca tomara um caminho por conta própria, nunca obtivera coisa alguma por mérito e esforço. Ela era nada.

Aquele era um golpe de misericórdia.

Apertei o gatilho.

Data de lançamento: 2014
Onde jogar: PC, por Steam ou Humble Blundle

* Vanessa Raposo adora jogos que oferecem o prazer masoquista de tomar escolhas difíceis. Estuda Game Design, é formada em Produção Editorial e coordena a sessão Tech & Games da Revista Capitolina.

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