sexta-feira, 27 de março de 2015

Transistor: Narrativas invisíveis na Utopia digital


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Existem jogos que oferecem diferentes combinações de mecânica e jogabilidade em uma proporção tão grande que parece infinita. É possível jogá-los três ou quatro vezes e, no fim de cada uma dessas vezes, perceber que você descobriu pelo menos mais uma coisa nova a respeito desse jogo. Já outros também oferecem novas descobertas ao jogador, não importa quantas vezes ele volte, só que dessa vez em sua narrativa. Nesses casos, jogar novamente para prestar atenção em detalhes antes ignorados se torna quase essencial para quem se interessa por narrativas complexas. No meio desses dois casos, apresentando um equilíbrio que uns poucos fortunados conseguem alcançar, está Transistor.

Verdade seja dita: eu posso percorrer os corredores de Cloudbank por dias a fio, testando variadas combinações de Functions e visitando cada terminal pelo caminho, e ainda assim passar longe de atingir a completude do segundo jogo da Supergiant Games, sucessor do aclamado Bastion. Há suficiente material em Transistor, tanto em narrativa quanto em jogabilidade, capaz de render uma análise profunda que no fim só arranha a superfície de seu conteúdo - o que é, obviamente, ao mesmo seu maior trunfo e minha maior dificuldade ao tentar fazer uma análise desse tipo. Como um bom fã de desafios, contudo, aqui estou, agradecido por mais essa camada de complexidade que Transistor oferece e a qual tentarei desvelar agora.


Em Transistor, você controla Red, uma cantora extremamente popular (nível Beatles de popularidade, ou o que quer que seja equivalente aos Beatles hoje, vocês jovens pós-modernos me informem) da cidade de Cloubank, uma espécie de utopia futurista onde os talentos de todos os cidadãos são explorados e potencializados. A própria Cloudbank, inclusive, parece ser guiada pela vontade coletiva de seus moradores. Certa noite, Red sofre um atento orquestrado pela Camerata, uma organização composta por pessoas extremamente influentes de Cloubank e insatisfeitas com os rumos da cidade. O atentado falha quando um homem misterioso é morto no lugar de Red, que é deixada sem voz e com a posse da Transistor do título - uma arma no formato de uma espada que absorveu a mente do sujeito sem nome.

Juntos, Red e o homem dentro do Transistor caminham por Cloubank em busca de respostas, apenas para descobrir que a cidade foi tomada pelo Process, um exército de robôs que agem como um vírus de computador, modificando a cidade e assimilando seus cidadãos (junto com seus talentos). É na batalha com o Process que reside a mecânica-chave de Transistor. Usando esses talentos, ou Functions, na terminologia do jogo, Red pode enfrentar o Process em batalhas que se dividem em dois modos: tempo real, como nos actions RPGs clássicos, ou Turn, onde inimigos congelam e o cenário se transforma em algo semelhante a um mapa de RPG tático. Apresentar dois modos de combate diferentes se revela uma opção interessante dos game designers, já que oferece uma oportunidade para o jogador de moldar seu playthrough de acordo com seu perfil, seja ele mais estratégico ou agressivo.

Outro aspecto da jogabilidade de Transistor que apresenta espaço para experimentações do jogador são as Functions, que fazem as vezes das habilidades dos RPGs tradicionais. Ao longo do jogo Red absorve novas Functions com o Transistor, aumentando sua variedade de movimentos em batalha. Ao todo, existem 16 Functions, algumas de ataque, outras de defesa, e é possível fazer combinações entre elas pelo menu ou mesmo colocar algumas em ação passiva, criando centenas de usos possíveis. Transistor faz um bom trabalho em incentivar o jogador a explorar tantas combinações quanto possível, transformando as Functions em uma mina de ouro para quem quiser experimentar variados modos de jogo.


Há no universo de Transistor uma quantidade de elementos que permanecem propositalmente vagos, deixando o jogador preencher as lacunas com as próprias teorias - e acreditem, existem incontáveis delas pela internet afora. Afinal, o que é Cloudbank, com seu nome tão significativo? Ela é parte do mundo físico? Há algo além dos limites da cidade? Qual a natureza exata do Transistor e do Process? Transistor não é um jogo que oferece respostas diretas para todos os seus mistérios, então não espere por elas. Em vez disso, o exercício de criar sua própria interpretação para o que é deixado em branco é essencial para a experiência do jogo. Pode parecer clichê, a princípio, mas faz perfeito sentido de acordo com a filosofia da Supergiant Games de tornar o jogador em um explorador e adaptador não apenas das mecânicas do jogo, mas também de sua narrativa. E há algo melhor do aquele intenso desejo de conversar com alguém após terminar uma obra de ficção?

Em uma época em que discussões relativas a tantos aspectos do video games afloram, incluindo tantos questionamentos relacionados a qual seria a duração ideal de um jogo, Transistor apresenta uma história de aproximadamente 5 horas extremamente bem-feita e que soa na medida certa, oferecendo ainda muitas outras outras horas para jogadores interessados em extrair o máximo dessa experiência. Há inclusive uma arena de testes, perfeitamente integrada à narrativa do jogo, que fornece desafios extras ou mesmo um espaço para treino a seus desbravadores. E, se após tudo isso ser dito e considerado, seu objetivo ainda for uma experiência direta, não há problemas, pois Transistor está na medida certa para isso também, transmitindo beleza e fascínio por seus circuitos. Na utopia de Cloudbank há espaço para todos, se você apenas aceitar fazer parte dela.

Data de lançamento: 2014
Onde jogar: PC, Mac, Linux e PlayStation 4

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sexta-feira, 13 de março de 2015

Lumino City: Uma aventura em papel, maquetes e memórias


Uma memória, mais antiga do que parece ser, na maioria das vezes: é o ensino fundamental e estou na minha aula de Artes, papel colorido, tesoura, cola e fita adesiva na minha frente. O trabalho de hoje é montar figuras geométricas em três dimensões e o andamento da atividade para mim está se desenrolando como uma semifinal de Copa do Mundo (eu, no caso, o Brasil, e os materiais para a tarefa, a Alemanha). Ao final daquilo tudo, após entregar à professora minhas figuras geométricas no melhor estilo 2.5D, muito à frente de seu tempo, eu tinha certeza que de que aquele não era o dom com o qual eu havia nascido. O tempo, mestre de tudo, provou que isso era verdade, Cresci sem qualquer talento para artes plásticas, mas amando descobrir cada novo talento no campo, fascinado pela habilidade e pelas diferentes representações de mundo possíveis por meio dessa habilidade. As aulas de Artes, hoje sei, não estavam ali para descobrir quem tinha o talento ou não. Sua função era expandir nossas visões e guiar nossos olhos para pontos até então ignorados.

Poucas coisas me lembraram tanto essas aulas, cuja idade já é contada na escala de décadas, quanto Lumino City. Não é só seu estilo visual, que, em plena era da arte digital, aposta em uma abordagem old school - todos os cenários são construídos em modelos reais, maquetes de papel e cartolina -, como também sua atmosfera de exploração, fascinação e descoberta de um mundo com novas e incríveis possibilidades. Lumino City tem em si o espírito de uma criança com uma aventura em mãos. Não a missão que guia sua protagonista, Lumi, propriamente dita, já que esse é apenas o caminho. A aventura real é a jornada de amadurecimento e independência de Lumi, uma aventura compartilhada por bilhões de crianças em aulas de Artes (e Matemática, e História, e Ciências) ao redor do mundo.


Em termos mecânicos, Lumino City é um puzzle / point and click criado pela State of Play. Ao contrário da maior parte dos point and clicks, o jogo não apresenta uma história complexa - sua premissa inicial é extremamente básica e nunca realmente se expande. Lumi é uma garota que parte em busca de seu avô, que desapareceu misteriosamente durante um encontro para um chá. Sua jornada a leva à Lumino City do título, um lugar de arquitetura singular, construído como um carrossel na rocha de uma montanha. Casas se abrem para o nada, a incontáveis metros de altura, complicadas passarelas, escorregas e canos servem de transporte de um ponto a outro da cidade e todos os moradores parecem conhecer o avô de Lumi, apesar de ninguém saber apontar seu paradeiro.

Eu poderia falar horas e horas de como o estilo visual de Lumino City é impressionante e não fazer justiça a ele. Provavelmente o que mais chama atenção nele é ser tão destoante da arte digital que é o padrão estético para video games. Mesmo colocando-se o fator novidade de lado, ele ainda é extremamente notável e deixa uma impressão marcante no jogador. Lumino City ganha vida na direção de arte impecável e original do jogo. Seus puzzles seguem a maior parte dos moldes estabelecidos pelos point and clicks, e, se não reinventam a roda, são bastante bem pensados e capazes de prender a atenção do jogador com sua variedade e razoável desafio (que aumenta bastante no trecho final do jogo). Há um sistema de dicas bem criativo, aliás, por meio de um Guia-Para-Todas-as-Coisas do avô de Lumi que a garota pode consultar para avançar na solução de certos puzzles.

A produção de Lumino City muitas vezes lembrava a de um filme.
É sem dúvida na exploração da cidade que Lumino City se destaca. Cada cenário apresenta uma novidade e seus moradores, meio fábulas, meio brincadeira com arquétipos, parecem fazer uma simbiose com o espírito da cidade, servindo como uma verdadeira extensão da arquitetura do lugar. Uma consideração importante a respeito deste jogo é que ele é na verdade uma continuação de outro trabalho da State of Play, Lume (estou começando a notar um padrão aí). Isso, porém, não é um problema para quem não teve a oportunidade de jogar o antecessor, grupo no qual me incluo. Lumino City é um jogo totalmente a parte e independente, mantendo apenas os personagens centrais e estilo visual de Lume.

Lumino City não é perfeito (sua jogabilidade apresenta espaço para melhorias simples que enriqueceriam a experiência) nem tenta ser extremamente inventivo em suas mecânicas, mas há bastante características únicas e momentos incríveis para garantir que sua experiência permaneça com o jogador por um longo tempo. Sua mistura de gostos - descobertas da infância com questões da vida adulta, tradição e progresso, o novo e o antigo em tranquila união - não perde a mão em nenhum instante, e há muitos elementos em sua história simples que podem propiciar leituras variadas. A experiência é válida para crianças de todas as idades, as de 8 e as de 80, porque o mundo tem sempre um ângulo novo para ser explorado e descoberto, não importa o quanto mais velhos e certos de tudo fiquemos. É exatamente o que obras como Lumino City querem nos lembrar a todo tempo. Ainda bem.

Data de lançamento: 2014
Onde jogar: Mac e PC, pelo Steam