Texto por Vanessa Raposo*
Eu queria muito botar uma bala na cabeça dela.
Eu queria muito botar uma bala na cabeça dela.
Chovia e eu não
era "eu". Tampouco era "minha personagem" recorrente. A
pessoa que erguia o revólver não tinha nada a ver com a história que acabara de
ouvir: era um estranho desembaraçado dos nós de uma narrativa perturbadora; um
ouvinte isento que podia julgar sem ser afetado pela pessoalidade da coisa
toda.
Exceto pelo fato de que era eu – Vanessa-jogadora-prazer – quem controlava seu dedo no gatilho.
"Escolha é uma ponderação entre custo e benefício”,
disse alguém. “As circunstâncias influenciam nesta ponderação. As consequências
cuidam do resto. Por isso, neste sistema, não pode haver ‘certo’ ou ‘errado’."
Percebo-me inclinada a concordar. Existem coisas que afetam aqueles que estão
ao nosso redor de maneira positiva e existem coisas que destroem as vidas
alheias. Mas o universo não tem um sensor de Paragons e Renegades e
não recompensa ou pune de acordo com nossa filiação. No fim das contas, para
sobreviver, às vezes é preciso ser esperto, às vezes é preciso ser gentil. Mas,
às vezes, é preciso ser um monstro.
Always Sometimes
Monsters não é um jogo fácil. Não falo isso no sentido mais tradicional de
"milhões de coletáveis e chefões porradeiros para enfrentar", mas
mais como "bosta de soro caseiro, preciso mesmo tomar esse troç...
uuaargh". Difícil de engolir, I mean.
Isso não quer dizer que ele seja ruim. ASM
é contado de maneira intrigante e interessante, mas claramente não é um jogo
que tenha como função primária "divertir" o jogador. Em muitos
momentos, ele chega a ser monótono e entediante – propositalmente. E isso dá peso a sua mensagem, solidez a
nossas decisões. Ok, ok... Talvez “soro caseiro” tenha sido um exemplo ruim.
Pense mais em um copão de Ovomaltine – delícia, mas essas pelotinhas precisam
ficar irritando a garganta assim? Isso é ASM,
para o bem ou para o mal.
Na introdução do jogo, você é apresentado como um personagem
com um futuro promissor. Depois de identificar seu gênero, etnia e orientação
sexual, você brinda ao que o mundo parece estar te dando numa bandeja de ouro:
um contrato milionário assinado com uma grande editora, a promessa de riqueza e
o amor de sua vida bem ali, ao seu lado. A cena corta para um ano depois. Você
está sozinho, atolado em dívidas num apartamento minúsculo no subúrbio. Como
não tem sequer uma única página de seu livro escrita, a editora te dá um pé na
bunda. E seu suposto amor vai casar com outra pessoa dentro de um mês.
Bem-vindo à sua vidinha de merda!
É aí que nós, jogadores, entramos, trazendo todo o nosso
caos particular conosco: quando recebo o convite para o casamento de minha ex,
inevitavelmente preciso reavaliar a minha própria vida. O que é importante para
mim? Meu trabalho criativo? Simplesmente sobreviver como for possível? A
lealdade a meus amigos? Reconquistar meu amor, talvez? O fato é que tenho 30
dias in-game para descobrir. Na
jornada, atravesso o país, conheço diversos personagens e sou colocada de frente
com várias decisões morais que dizem quem, de fato, sou. Nesse intervalo, sobra
tempo para discutir exploração de mão-de-obra, trabalhos idiotizantes, vício em
drogas, violência, preconceito racial, de gênero e de orientação sexual, e até
fraude eleitoral. Ao longo de flashbacks, influenciados pelas minhas decisões
"futuras" (ou seja, no tempo do jogo), é que descubro o momento
preciso em que as coisas começaram a dar errado. Por culpa de quem? Dá para
consertar? Eu quero consertar? Acima
de tudo, a pergunta que fica é: até onde vou por algo que desejo muito? Não é
uma premissa extremamente inovadora nos jogos, é verdade, mas o fato de
falarmos de coisas cotidianas e reais engrossam o tom e atingem um ponto certeiro.
O que Always Sometime Monsters faz
muito bem é criar uma história interessante em um setting ironicamente pouco utilizado nos videogames: o mundo real,
com pessoas reais. Ele ajuda a suprir uma carência evidente em jogos que tratem
de questões cotidianas e de dramas humanos que fujam dos apocalipses zumbis,
guerras e batalhas intergalácticas. Existem bilhões de histórias ocorrendo
neste exato momento em nosso mundo normal, com nossos amigos, pais, filhos enquanto
vão à padaria, pagam o colégio das crianças e evitam comer salada. O vácuo que
os jogos deixam ao ignorar esses temas fica ainda mais evidente quando a gente pausa
para comparar com outras mídias. Por isso, é importante que games como ASM existam – e que maravilha que, ainda
por cima, seja tão coerente e interessante.
Apesar de nem sempre ser agradável, Always Sometime Monsters é um jogo com uma vibe
no geral positiva. Ele é engraçado – acredite ou não –, e segue num ritmo que por vezes lembra mais um bate-papo entre amigos
cheios de ideias que você adora ouvir enquanto toma umas cervejas. Não se
engane pelos visuais, também. Apesar de ser feito no RPG Maker, há capricho no
texto, na caracterização dos personagens e maturidade clara para falar do que
importa. Mais interessante, porém, é que aquilo que definimos como relevante
vai aparecendo aos poucos de uma forma analógica (isso é, não binária) ao longo
da jornada e de uma série de escolhas. Há gradações cinzentas, tons inclusive
interpretativos, que moldam a nossa própria história em mais do que uma simples
ramificação de escolhas fixas.
Por isso, e apenas por isso, eu fiz aquilo na noite chuvosa.
Tinha ouvido o suficiente. O comando de disparar a arma é
digital: 1 – mata; 0 – não mata. Mas a mente que decide é analógica; minha
história é repleta de caos e esbarrões. Não era por vingança, raiva ou frio
merecimento. Aquela mulher nunca tomara um caminho por conta própria, nunca
obtivera coisa alguma por mérito e esforço. Ela era nada.
Aquele era um golpe de misericórdia.
Apertei o gatilho.
Data de lançamento: 2014
Onde jogar: PC, por Steam ou Humble Blundle
* Vanessa Raposo adora jogos que oferecem o prazer masoquista de tomar escolhas difíceis. Estuda Game Design, é formada em Produção Editorial e coordena a sessão Tech & Games da Revista Capitolina.