quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Monument Valley: A jornada da princesa nas veredas escherianas


M. C. Escher, artista gráfico holandês, foi sem dúvida um dos criadores mais importantes do século XX. Sua obra, marcada por padrões geométricos, isometria, cruzamentos e entrecruzamentos, transformava a matemática em arte ao exprimir conceitos e fórmulas em gravuras. Mais do que isso, sua obra é lembrada e celebrada hoje em dia por abordar o conceito dos ciclos infinitos, sistemas que, por ilusão de ótica, partem de um ponto inicial e voltam para esse mesmo ponto de uma maneira que desafia a lógica, como sua famosa cachoeira exemplifica. Uma obra tão inovadora, que brinca com noções de espaço e física, não entraria para a história sem deixar de inspirar dezenas de trabalhos de ficção (e render algumas exposições, também, incluindo uma alguns anos atrás no Rio da qual sou bastante frustrado de não ter ido - mas não nos prolonguemos nisso).

Uma das notáveis obras de ficção inspiradas em Escher é Monument Valley, do estúdio Ustwo, um puzzle lançado para Android e iOS que assume suas influências de maneira clara e apaixonada em sua direção de arte e utiliza os conceitos das criações escherianas como núcleo de sua jogabilidade. O jogo segue Ida, uma princesa que explora as construções de um reino sem nome, tentando achar seu caminho pelos labirintos do lugar, criados a partir da "sagrada geometria" utilizada no reino, como é explicado na história. O objetivo da jornada de Ida não está claro para o jogador inicialmente, embora a narrativa eventualmente ofereça pistas para solucionar esse quebra-cabeças (e nenhum duplo sentido pretendido aqui, juro).


A jogabilidade de Monument Valley é bastante simples e intuitiva: os toques do jogador movem Ida. Eventualmente ela encontra alavancas que podem ser usadas para mover ou alterar o cenário, transformando-o em uma ilusão de ótica escheriana que Ida pode usar em sua vantagem para chegar em pontos antes inalcançáveis. A simplicidade das mecânicas é contrastada pela riqueza da direção de arte e do estilo visual de Monument Valley. Mesmo na tela pequena de um smartphone a "sagrada geometria" não tem seu brilho diminuído, transformando o jogo em mais uma prova de que mesmo com recursos limitados é possível fazer muito. O mundo de Escher ganha mais cor e novos tons de poesia, em uma homenagem sólida e com personalidade.

Porém, o que me impressionou ainda mais em Monument Valley foi seu talento para expor sua narrativa ao jogador com pequenas pistas e dicas, oferecidas em uma introdução, uma frase ou um detalhe do cenário. É verdade que essa natureza aberta, que deixa para o jogador compor as próprias teorias e interpretar aqueles eventos à sua maneira, pode ser bastante frustrante para quem prefere narrativas mais diretas, entretanto vale a pena dar uma chance e juntar as peças da história por trás daquele mundo e da solitária jornada de Ida. Jogos como Shadow of the Colossus e Journey - que figuram entre os mais importantes da cronologia dos video games - também exploraram o caminho da narrativa aberta com grande sucesso, e Monument Valley consegue sustentar um tom de mistério e fascínio igualmente interessante, embora de maneira mais simples e particular.

Há outros pontos inerentes a Monument Valley que também não são universais: o principal é que o jogo é muito curto. Jogadores experientes em puzzle podem terminá-lo em uma hora e meia, mais ou menos. Mesmo quem não tem costume com o gênero não deve tomar muito mais do que isso - Monument Valley é fácil, em termos diretos, o que pode também ser negativo para alguns. Eu, porém, acredito que a Ustwo sabia exatamente o tipo de experiência que queria oferecer e entregou justamente o que planejou: uma experiência artística, autoral, que dura o tempo exato que precisa durar. Quem ainda sentir vontade de mais após terminar o jogo pode comprar a expansão, Forgotten Shores, que adiciona oito novas fases. Seja como for, quem aprecia aventuras curtas e experiências ricas em cor, criatividade e beleza tem nas veredas escherianas de Monument Valley um caminho interessante para percorrer.

Data de lançamento: 2014
Onde jogar: Sistemas Android e iOS



quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Life Is Strange, Episódio 1: Muito mais que uma introdução


"O bater das asas de uma borboleta em Tóquio pode provocar um furacão em Nova York." Se esse enunciado parece familiar para você, você provavelmente já leu ou ouvir falar alguma coisa a respeito da teoria do caos. Se analise teórica de sistemas não é sua praia, não se preocupe, você não veio parar na página errada. Tudo que quero é chamar atenção para a diretriz central da teoria, a de que pequenas alterações e irregularidades em um sistema complexo podem levar a resultados inesperados (ou seja, é a justificativa científica para aquele temporal anunciado pelos meteorologistas há dias ter se transformado em sol e muito calor). A grosso modo, estamos falando aqui das condições para o surgimento do caos, e existem poucas coisas mais caóticas que a vida de uma garota de 18 anos, presa entre o fim da adolescência e o começo da vida adulta em um mundo que promete descobertas e anseios, felicidades e decepções entregues quase juntas e mal embrulhadas.

Ainda assim, Life Is Strange, da Dontnod Entertainment, decide adicionar um pouquinho mais de caos na vida de Maxine Caulfield. Max voltou à pequena cidade no Oregon na qual nasceu para estudar fotografia na Blackwell Academy, após alguns anos morando em Seattle. Após algumas semanas inciais menos que entusiasmantes, a vida de Max na academia dá um giro quando ela testemunha um assassinato em um dos banheiros - e a vítima é sua melhor amiga de infância, Chloe, com quem ela perdeu o contato após sua mudança. O pânico dá lugar ao choque quando Max, em seu desespero, descobre ter o poder de voltar no tempo. Jogada de volta para a sala de aula, alguns minutos antes, ela precisa lidar com as implicações de seu poder recém-descoberto e vê nele a chance de fazer algo bom e salvar a amiga de infância.


A proposta de Life Is Strange se inspira em um longo sonho humano: quem nunca se arrependeu de dizer algo um segundo depois das palavras saírem e desejou poder voltar no tempo para consertar isso? Ou se torturou por dias após tomar uma decisão importante, imaginando o que aconteceria se simplesmente tomasse a decisão oposta? A mecânica de "aperte um botão e volte alguns instantes" não é inédita - Prince of Persia: The Sands of Time foi um dos maiores sucessos de 2003 por conta justamente disso, entre outros fatores -, mas Life Is Strange se destaca por amarrar essa funcionalidade à sua narrativa. Não é, portanto, um recurso de tentativa de erro, algo que pode ajudar você a ter uma vantagem em um combate ou sequência de plataforma; pelo contrário, não há escolha "certa" entre assumir ou não a culpa de algo no lugar de uma amiga ou optar por humilhar ou confortar uma rival após uma situação embaraçosa. Todas as possíveis escolhas dão início a uma cadeia de eventos que pode se tornar gigantesca, e o reset temporal pode adicionar mais variáveis a uma equação que já é bastante complexa.

Se sua mecânica já é um diferencial que torna o primeiro episódio, lançado em janeiro deste ano, digno de uma conferida, sua história mostra-se promissora e o elemento que faz o season pass valer a pena. O mundo em que Max vive, as pessoas que fazem parte dele e as situações e dilemas pelos quais elas passam são bastante críveis e escritas com bastante cuidado. A angústia característica de jovens de 17 e 18 anos pode não ser o cenário mais entusiasmador para se visitar (ou revisitar), mas é tratado com uma boa dose de beleza: caminhar nos corredores da academia ao som de indie folk enquanto você é apresentado às felicidades e tristezas daquele grupo de estudantes é um momento de puro poesia, que dá o tom das coisas que virão.

Ok, talvez nem tudo seja crível, mas acho que é isso que chamam de rebeldia adolescente, não?

Também é preciso admirar a bravura da Dontnod Entertainment, que, em tempos de Gamergate e polêmicas (completamente idiotas e danosas) quanto à representação feminina em video games, manteve-se fiel à sua escolha artística e insistiu em uma protagonista feminina, apesar das pressões de publishers em potencial para que isso não acontecesse, até receber carta branca da Square. Esse é, inclusive, o segundo do jogo da desenvolvedora a optar por uma mulher como protagonista, algo já feito em Remember Me, jogo que, apesar de não chegar perto de reinventar a roda, merecia mais amor e atenção do que recebeu. Em Life Is Strange, a relação de Max e Chloe é um dos destaques do primeiro episódio e promete ser expandida e aprofundada nos próximos capítulos.

O efeito borboleta de Life Is Strange está só começando, é verdade, e seus efeitos apenas começam a ser sentidos. A borboleta já está lá e o furacão já se formou, mas ainda está para chegar. O primeiro episódio é uma introdução ao que pode se tornar um dos melhores jogos do ano, ao mesmo tempo em que não se limita a ser apenas um degrau da escada. Sua riqueza e profundidade já é notável e fica bastante claro que ainda há muito mais pela frente. O vento pode soprar para qualquer lado e se o presente é moldável, o futuro está aberto a especulação, mas uma coisa já está decidia: eu vou estar lá para ver o que vai acontecer.

Data de lançamento: O primeiro episódio saiu em janeiro e o segundo está previsto para março, com outros três ao longo do ano.
Onde jogar: PC, PS3, PS4, Xbox 360 e One. É possível comprar o episódio separado ou o season pass.


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

The Vanishing of Ethan Carter, ou (Venha ver o pôr do sol)


No meu caminho, desci até a praia e fiquei olhando a água bater nas pedras. Eu conseguia ouvir a represa dali, distante, mas uma presença palpável. A imagem do corpo que eu tinha acabado de encontrar ainda estava gravada na minha cabeça, mas não evocava terror. Era mais uma melancolia, uma tristeza mal-disfarçada que havia se entranhado em cada centímetro daquela estrada. Fui até a ponte sobre a represa e fiquei alguns minutos apenas olhando a vista, ouvindo a água exercer seu poder e os sons do fim de tarde. Não queria continuar andando, não agora, não por enquanto. Queria ficar ali e talvez chorar. Mas eu tinha uma meta, ainda que não soubesse até então qual era. Mas sabia que ela não estava ali, naquela ponte, naquela melancolia. Então fui. Sem saber para onde, apenas fui.

The Vanishing of Ethan Carter começa com uma mensagem de seus desenvolvedores: "Esse jogo é uma experiência narrativa que não segura você pela mão". Essas palavras podem ser extremamente encorajadoras para alguns, extremamente frustrantes - ou pretensiosas - para outros. Independentemente de qual desses é o seu caso, uma coisa eu posso garantir: essas palavras são sinceras e verdadeiras. Não há uma grande introdução à história: você sabe apenas que é Paul Prospero, detetive paranormal que, como você descobre de maneira empírica minutos depois, pode entrar em contato com o mundo dos mortos. Paul foi convocado à minúscula cidade de Red Creek Valley pelo tal Ethan Carter do título, um garoto que desapareceu no ar após fazer um chamado desesperado. Onde está Ethan e o que o deixou tão assustou é um mistério cujas peças do quebra-cabeças você começa a juntar no primeiro minuto de jogo.


A maior vantagem de The Vanishing of Ethan Carter é, como indicado por seu aviso inicial, confiar plenamente em seu jogador. Isso não se refere apenas a questões mais práticas, como dificuldade ou aprendizado de mecânicas. Sim, você não vai receber qualquer instrução para resolver os puzzles (e, na verdade, na primeira vez que encontrei um só percebi que se tratava de um puzzle quando falhei nele e tive que recomeçar), mas esse é um jogo montado astutamente de modo que isso não se torne um ponto de frustração: não há morte, limite de tempo ou adversários, de modo que tudo pode ser feito ao seu tempo. O principal benefício dessa liberdade oferecida, porém, é que toda a narrativa do jogo é desvelada por você e apenas você, no seu ritmo, por meio de seus esforços e descobertas. A sensação de objetivo alcançado casa perfeitamente com a atmosfera de mistério e a natureza aberta do jogo.

O segundo grande trunfo de The Vanishing of the Ethan Carter é também o primeiro que se nota: o jogo é simplesmente e inacreditavelmente bonito demais. É verdade que potência gráfica não é indispensável para criar atmosfera e, pelo menos na minha opinião, está longe do topo da lista de coisas que constituem um bom jogo, mas seria extremamente injusto e até cruel não oferecer elogios ao feito que são os visuais dessa obra. O time da Astronauts, a desenvolvedora, claramente sabia o que queria alcançar e não poupou esforços. A direção de arte é riquíssima, as texturas são impressionantes e o jogo como um todo parece tão orgânico e real que é impossível não se sentir andando realmente pelas trilhas do Wisconsin, acreditando de coração que se você respirar fundo e se concentrar, vai sentir o cheiro da terra molhada.


The Vanishing of Ethan Carter tem em si uma mistura de elementos e referências que não passam despercebidos a seu jogador: é impossível, por exemplo, não associar Red Creek Valley com Twin Peaks, duas cidades relativamente isoladas onde eventos sinistros acontecem rotineiramente. Conforme você explora o lugar, aparentemente deserto, se depara com uma série de assassinatos e as mecânicas utilizadas para resolver esses crimes podem lembrar jogos como Murdered: Soul Suspect. The Vanishing of Ethan Carter consegue, porém, se diferenciar e se mostrar uma obra bastante original por meio de sua atmosfera e narrativa com personalidade. Ao fim da experiência, fica a sensação de que seus desenvolvedores conseguiram atingir sua meta: criar um jogo de mundo aberto com imersão singular, com uma jogabilidade simples, mas efetiva, que se amarra perfeitamente a esse mundo.

Fica, também, ao fim de tudo, uma admiração pela montanha-russa de emoções que esse jogo consegue oferecer sem perder seu foco. Deslumbramento, suspense, puro horror e alegria sincera aparecem em sucessão ao longo da jornada, tornando The Vanishing of Ethan Carter uma experiência próxima ao indescritível - e também muito pessoal. Uma constante, porém, é sua inegável melancolia. Leve, quase velada, por trás dos panos, apenas ali, naquele pôr do sol no horizonte visto pela ponte sobre a represa.

Data de lançamento: 2014
Onde jogar: PC, por Steam, com previsão de lançamento para PS4 para este ano